domingo, 27 de maio de 2007

Inventando continentes

Lá em cima o sol e as estrelas em seu movimento repetido, constante e involuntário. Cá em baixo as pessoas em seu movimento. Tudo indicava ser um dia normal, mas algo inusitado aconteceu. – Olá! Sou vendedora. - disse a mulher de meia idade mostrando o crachá bonito que confirmava o que ela dissera. E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, continuou - Quero lhe oferecer um par de óculos, mas não de um tipo qualquer. São absolutamente especiais. A idéia de que aquele meu agradável momento contemplativo seria quebrado por uma ladainha tecnológica se dissolveu em pleno processo de surgimento.

A natureza especial dos óculos estava, segundo a vendedora, no fato de eles possibilitarem a incrível habilidade de ver o que até então estava oculto. – Como assim? - com um tom de voz que não tentava disfarçar a incredulidade. – Meu caro, o essencial é invisível aos olhos. Você não sabia? Tome, experimente. – Não vejo nada diferente... – Sei... aposto que você não tinha visto aquelas flores ali atrás. Ora, eu sabia muito bem que não havia nenhuma flor atrás de mim. Ao fazer meu itinerário normal, como qualquer outro dia, lá estava o banquinho onde gosto de me sentar e a árvore que me oferece sua sombra, lá estavam as pernas apressadas que passam pra lá e pra cá num musical antigo, em linha de montagem, e lá estava o asfalto, quente e previsível atrás de mim, sem qualquer flor.

Mas de algum modo, por algum motivo, o olhar daquela mulher emitia uma confiança que me impulsionou a olhar pra trás. – Ué, como elas vieram parar aqui? Eu com cara de bobo e ela com um sorrisinho dúbio. – Por um breve instante, ao se virar, você acreditou que veria as flores. Isso te assusta, não é? Você está acostumado a descobrir as coisas, a perceber a verdade que está lá fora. Nunca lhe ocorreu que talvez a verdade não esteja tão longe? – Mas isso é loucura! – Se você acreditar nisso... Veja, você está habituado a repetir perguntas que ecoam através de você, e descobre muito objetivamente a resposta no Grande Livro da Razão. Mas você pode, se quiser, inventar suas próprias perguntas e criar as respostas.

Há uma história que considero muito interessante... Dizem que os nativos da atual América, no momento da chegada dos europeus, não perceberam imediatamente seus navios no oceano. Eles nunca tinham visto algo assim, e ao olhar o horizonte azul, lá estavam o mar e o céu, como sempre, e nada mais. Usando as suas palavras, seria muita loucura ver aqueles enormes objetos de madeira deslizando suavemente sobre as águas, sem afundar. E por outro lado, dizem que até então não havia aquele continente ali. O que havia é o mar, cheio de criaturas monstruosas, e no fim o abismo. Mas algumas pessoas loucas acreditavam que talvez houvesse outras terras, talvez não houvesse o enorme abismo...

As pessoas querem muito ser razoáveis, objetivas e racionais. Mas não tem que ser assim. Apenas pode ser. Aquelas palavras eram realmente estranhas, e nada me impedia de dizer isso à mulher. Nada me impedia de levantar e ir embora com um sorriso sarcástico nos lábios. Nada me impedia de fazer isso, a não ser meu desejo de ouvir aquelas palavras que, estranhamente, faziam sentido. – Você pode inventar que faz bem a uma pessoa e ela a você, que ao se encontrarem são tomados ambos de algo especial e agradável. Esse sentimento que surge entre os dois inunda as almas, transforma o ambiente e se espalha em ondas para o mundo, o tempo, a vida, o universo todo. Terá inventado, assim, o amor. Você pode até mesmo inventar continentes, meu caro. O mundo depende de como você olha.

Mas a escolha é sua; não posso te forçar. Houve então um silêncio que me interpelava, pedia que me manifestasse. Depois de um longo tempo, em que fiquei pensativo, a mulher pacientemente esperou que eu dissesse algo. – Mas quanto custam esses óculos? – Você tem que depositar sua fé, apenas. Achei engraçada a palavra “depositar” naquele contexto. Dei uma risada tímida. – Mas você disse que é uma vendedora... Agora o breve sorriso veio dela. – Ora, se eu lhe dissesse que sou uma doadora de óculos, você nem me daria atenção, certo? E aposto que olharia pra trás e diria “Que louca!”. Afinal, você nunca viu isso... – É verdade! - e agora minha risada veio forte e espontânea - Eu aceito os óculos. Muito obrigado... qual é o seu nome? – Nossa, tenho vários! Há pouco você me chamou de loucura... Agora devo ir, mas antes eu gostaria de uma dessas flores. Pega uma pra mim? Quando me virei pra lhe entregar a flor, ela tinha sumido. Fiquei um longo tempo parado, com o olhar disperso, tentando entender aquilo tudo.

De algum modo, me sentia diferente. Olhava minhas mãos, falava baixinho pra ouvir minha voz, sentia a luz que atravessava os vãos da árvore e chegavam até mim, olhava o asfalto, as montanhas, o céu... fazia tudo isso como se fosse pela primeira vez, como se tudo tivesse surgido agora, ou como se eu tivesse surgido agora, ou talvez como se tudo - as folhas, o chão e o céu, e até mesmo eu - fôssemos uma só coisa. Ao olhar um muro, um daqueles em frente dos quais passo todos os dias, vi que algo estava escrito. Poucos minutos atrás, ele estivera em branco, mas isso não me incomodou. Lá estavam as palavras: E não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez. Uma intensa e repentina crise de riso se apossou de mim.

Caminhando pela rua, as pessoas - ainda havia pessoas - me olhavam com um ar desconfiado. Aos seus olhos, certamente eu parecia um louco.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Coração de Artista

Quero ser um artista Fazer a incrível alquimia De transformar a vida Suas derrotas e conquistas Em lirismo e poesia Quero entrar na vida de alguém Um dia ser a “nossa canção” De um casal de apaixonados Fazer bater no peito petrificado A pedra pesada que se retorna coração Quero fazer a fabulosa magia De transformar água em vinho Alcançar o estado de arte Trilhar esse maravilhoso caminho Por toda a vida, até a morte “Qual Enzo, o artista? Conheço, claro Que belo estilo, que modo raro De falar dos sentimentos humanos Com perspicácia e sinceridade Eis um artista de verdade” Quero ser um artista Em metá-foras quero nadar Meto-fora o sentido inicial E ponho outro no lugar Mais interessante e original Sim, eu quero ser artista Desses que fazem arte mesmo Pegar em estado bruto e lapidar Um acontecimento banal, a esmo E com ele fazer rir e chorar Mas o que é ser artista, ao certo? Se tem a ver com sentir assim E cada vez mais se entregar Então eu vou chegando mais perto De um dia me tornar

domingo, 6 de maio de 2007

Histórias de um All Star

Esse All Star velho de guerra Tem muita história pra contar Esse All Star cheio de terra Nunca se cansa de pular Lá vai ele, olha lá No chão e no ar! No chão e no ar! Ele levanta poeira Que se dissolve pelo ar Ele pula a noite inteira E nunca se cansa de pular Certas coisas nesse mundo E difícil acreditar Olha que curioso esse All Star Ele é um feito de dois E parece mudo Mas tem língua e sabe falar... Toda vez que falta som O inaudível nos salta aos ouvidos É um salto na noite iluminada As mãos, frenéticas, animadas Dançam ao som do velho garoto Que não pára de cantar (Ele tem singer até no nome) A atmosfera parece encantada Olhos, ouvidos e corações Têm sede, têm fome E se alimentam das lindas canções 110... 120... 160... Só pra ver até quando O nosso corpo agüenta O som que vem chegando Tem sabor de menta E se mistura à alegria intensa Da multidão emocionada Nessa terra de Engenheiros Cercados por tantos mineiros A juventude é uma banda No alto das Montanhas Encantadas Nem tão longe que eu não possa ver Nem tão perto que eu possa tocar Nem tão longe que eu não possa crer Que eu também estive lá E lá em cima, de mãos dadas Pulando e cantando comigo Meus parceiros, meus amigos Nas curvas dessa infinita highway Passageiros da mesma estrada.