terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Tributo a Need for Speed - Most Wanted

Lá fora chuva e vento e frio e nuvens. Sábado à tarde e dentro da República os meninos que durante a semana trabalharam e estudaram agora se deixam entorpecer diante da televisão. Na tela, as máquinas de curvas provocantes e cores vibrantes esbanjam o ronco nervoso de motores sedentos por aventura. – Olha aí, cara! Cotovelo à esquerda, cotovelo à esquerda! – Nossa, esses polícia tão zangado! Vixe! Passa no triângulo, mano! – Pô, que *!#@”^!!! Deu “busted” de novo! Droga! – Sente-só-a-potência! Míseros-trezeeeentos-e-cinqüenta-quilômetros-por-hora! E assim corre o tempo. O ponteiro dos segundos, magrinho e meio com tendências hiperativas, se deixa levar pela velocidade alucinante do jogo na tela. O tempo não passa, simplesmente. Se deixa levar ao sabor do vento que sopra pra trás os cabelos dos jogadores motoristas. Os minutos se entregam agora e pisam com tudo no acelerador. As horas são ultrapassadas como retardatários patéticos. “Need for speed - Most wanted”, dizem as letras. De fato, ele é o mais querido de todos. ............................. Olá, meu nome é Enzo (balançando a perna com certo nervosismo). É o primeiro encontro que eu participo. É um passo muito importante pra mim. Um passo de cada vez, né? Sem pressa, um passo de cada vez (insinuando um ar irônico, mas em seguida voltando a falar sério). Bom (olhando o relógio, meio instintivamente), já faz cinco horas e (olhando de novo o relógio) trinta e dois minutos que estou limpo. Cinco horas sem jogar Need. Agora vejo que não preciso de Need (pensando que essa frase é engraçada, mas sem dividir o pensamento com os outros). Aquele ronco de motores, aqueles policiais desesperados pra me pegar, aqueles carros que saltam num balé poético quando eu bato neles a trezentos por hora... tudo isso é desnecessário (continuando o trocadilho entre idiomas...). (Pequena pausa. Efeitos da abstinência. As pessoas trazem um copo com água e com o tempo o rapaz pára de imitar com a boca o barulho de motor. Continua seu relato.) Sei que vai ser difícil. Tenho a velocidade no sangue, já injetei altas doses e não vai ser fácil ficar sem. A gente ouve umas histórias estranhas, né? Essas pessoas que têm flash back e tal, que de repente, num dia qualquer, começam a passar marcha no ar ou a correr quando passa a polícia... Essas histórias assustam a gente, mas eu estou disposto a me curar e levar a vida num ritmo mais lento. (Uma lágrima rola na face do depoente. Os ouvintes, sentados em círculo, prestam atenção a essas palavras que ecoam em suas mentes e soam familiares. Um dos ouvintes não suportou a vontade e saiu do encontro. Foi encontrado algumas horas depois na locadora mais próxima. Mas sempre há uma esperança. O importante é dar um passo de cada vez. Um-dois, um-dois, um-dois... Somente números de um, no máximo dois dígitos.)

sábado, 11 de novembro de 2006

Por que assistir Charlie Chaplin

Ao olhar um grande quadro na parede, vejo um homem com um elegante chapéu, um terno já castigado pelo tempo, calças que me fazem compreender o porquê dos suspensórios e, por último, o pequeno grande detalhe dos sapatões (me refiro aos sapatos grandes!). Inevitavelmente me pergunto o que há de especial naquele homem de figura romântica e melancólica cujos olhos plenos de expressão parecem desconhecer a própria grandiosidade. Afinal, quem é esse homem que, com seu corpo franzino e sua alma gigantesca, levou e ainda leva multidões a rir e chorar diante de uma tela? Charles Spencer Chaplin nasceu na Inglaterra do final do século XIX, um país marcado por problemas sociais, no qual muitos viam na arte uma forma de fugir do "capitalismo selvagem" das fábricas. Sua mãe Hannah, que cantava e representava, foi quem permitiu ao pequeno Charlie ter contato com a arte. Já no final da adolescência seu jeito único de fazer graça começava a torná-lo famoso, e em poucos anos, indo para os EUA, surgia o imortal Vagabundo descrito mais acima. Perfeccionista, Chaplin fez dezenas de filmes, que lhe custaram horas e horas de trabalho incessante. O resultado? Algumas de suas obras são consideradas genuínos exemplos do que há de mais belo na sétima arte. É o caso de Tempos Modernos, um filme que critica o tal capitalismo selvagem ao mostrar um operário que, de tanto apertar parafusos, fica literalmente louco. E não me atrevo a tentar descrever o lirismo perfeito dessa cena! Também nesse filme, há uma cena em que o Vagabundo, por acidente, segura uma bandeira vermelha, sendo por isso preso como "líder comunista". Curiosamente, o próprio Chaplin, que defendia os direitos humanos e afirmava categoricamente ser humanista e não comunista, foi perseguido e até exilado por americanos um tanto paranóicos (certas coisas parecem nunca mudar...). Outro exemplo do impulso incontrolável de Chaplin para "fazer arte" é O Grande Ditador, no qual o artista critica de forma genial e esmagadora um certo Adolf Hitler, cuja mania de grandeza custou a vida de milhões de pessoas (sim: judeus, negros e homossexuais são pessoas). E, assim como o outro, este filme também tem suas curiosidades. Olhe bem a figura de Chaplin e a de Hitler. Percebe algo? O bigode, claro! O Deus da Comédia e o deus da destruição, que nasceram com apenas quatro dias de diferença, conquistaram o mundo com um visual no mínimo inusitado. Se Chaplin representa o amor à arte, o desejo de se dedicar a algo sublime e alcançar o máximo que a condição humana nos permite, a verdade é que hoje em dia as coisas são bem diferentes. O cinema mudo, que tinha muito a dizer, foi trocado por um cinema falado que, com seus tiros e suas explosões exageradas, pouco tem a comunicar. Com aqueles filmes de seqüestro aéreo, por exemplo, temos a oportunidade de ver o mesmo enredo n vezes. E os filme de guerra, então? Somos assediados, a todo momento, a acreditar que os EUA são nosso GOD: "Grande e Onipotente Defensor". Originalmente, o Super Man nada mais é do que a personificação disso. Como não sou fatalista, devo admitir que existe um Roberto Bolaños (aqule do "Isso, isso, isso!") ou um Roberto Benigni (aquele outro do "Buongiorno, principessa!), que não só lembram o grande mestre, como nos presenteiam com sua própria genialidade. Portanto, na locadora da esquina existe, no meio do barulho irritante de tiros e ronco de motor, escondida e acuada num cantinho, uma fita de aspecto pouco atraente, mas capaz de revelar um mundo de lirismo, magia e sentimento. É só estender a mão e pegá-la.

Declaração de humor

Um minuto de silêncio Repleto de arte e beleza Gestos e faces que com certeza Dizem mais ao coração Do que gritos e barulho de explosão Um minuto de gargalhadas incessantes Quando você entra pela tela E saltitante dá aquela Sua tropeçada hilariante Um maravilhoso vagabundo, Um formidável andarilho, Que percorre, de tela em tela, Os quatro cantos do mundo E carinhosamente lhe aplica Um ponta-pé no fundilho Para o completo delírio Da platéia, que fica Pra morrer de tanto rir Porque é impossível não sorrir Em sua presença tão marcante Este é você, Carlitos Com sua alegria contagiante E seu olhar melancólico, Que parece vasculhar o infinito, Nos mostra o que há de mais mágico, De mais intenso e mais bonito Nesse mundo silencioso Tão maravilhosamente falante, Nesse mundo em preto e branco Tão cheio de cor A você, Carlitos, Minha sincera declaração de humor.

Dolls - Takeshi Kitano

O filme Dolls, do cineasta japonês Takeshi Kitano, é um ótimo exemplo de cinema arte. A linguagem é muito bem cuidada em vários aspectos. Os diálogos enxutos se inserem numa perspectiva de não contar a estória, mas sim mostrá-la, deixando conosco grande parte do processo de compreensão. A parte visual é deslumbrante, um mosaico de cores e formas que convidam à contemplação. As cenas longas, arrastadas, aproximam vida e arte e conferem ao espectador a possibilidade de maior imersão na obra. O que mais me cativa em Dolls é o enredo. Três estórias de amor que convergem no palco do drama e da tragédia. O termo palco é bem propício, porque o nome Dolls (bonecos) remete ao teatro nipônico chamado bunraku. Assim como os fantoches, no início do filme, se movimentam, sentem e se expressam sob o efeito decisivo de uma força maior, mas aparentemente têm a crença ingênua de serem a fonte de si mesmos, de forma análoga os personagens em Dolls agem dentro de um panorama de possibilidades já pré-definido, são absorvidos por uma realidade que lhes é exterior e alheia. A vida em sociedade é um grande teatro e os papéis disponíveis independem de nossa vontade. Essa analogia, ao meu ver, é válida sobretudo na estória central do filme (são três estórias que se cruzam, como mencionado acima). Tudo isso mostrado de maneira muito intensa e ao mesmo tempo singela, com um silêncio gritante de personagens que trazem à tona seus sentimentos através de gestos, de olhares que são a ponta de um enorme iceberg. Além disso, o amor e a loucura são temáticas que se fundem, se interpenetram de modo intenso e angustiante. Quem ousa se insubordinar à mão invisível e tirânica que rege as relações humanas está à margem. O fantoche que se atreve a pular pra fora do palco e ganhar vida própria é insano. A respeito dessas simbologias que aqui estou analisando, convido você leitor a interpretar algumas cenas comigo. Primeiro, o momento em que Sawako e Matsumoto estão caminhando contra o vento e atrás deles um grupo de pássaros tentam voar, mas não conseguem ir adiante devido à força do vento. Segundo, os momentos em que estes dois fazem juntos algumas travessias, como de um lado para outro do rio. Terceiro, o momento em que Sawako, até então aparentemente “ausente”, mostra a Matsumoto, de forma nostálgica e tristonha, o anjinho que ele havia dado a ela. Dolls é, em resumo, um filme que me impactou muito, que me faz viajar sempre que o vejo de novo. Uma belíssima obra da sétima arte. Convido você, leitor querido e imaginário, a assisti-lo e trocar idéias comigo a respeito.

Dolls - poema

A travessia do espelho (a Takeshi Kitano) O amor é a flor insana Que nasce no asfalto Rompendo estatutos e normas Em pleno oitavo dia da semana É a realidade mais incrível Que eu conhesso É completamente aveço À lógica e à matemática Quanto mais se divide Mais se multiplica Quanto mais se explica Mais se confunde o amor Que na verdade nunca coincide Com sua forma anterior O amor é energia e movimento Transforma as águas de um lago Em rio destemido e violento Que sobe as montanhas Rumo ao azul infinito No grande teatro De papéis pré-definidos Amar é transgredir, é inventar Novas formas de agir e de pensar É enfrentar a mão do diretor Que nos faz andar em círculos E fugir pela tangente Porque fora do palco Os amantes conhecem o inusitado Contemplam o diferente E unidos pelo amor Que os torna fortes Atravessam as pontes Que surgem pela frente E até mesmo a morte Causa de tanto medo e agonia É apenas mais uma passagem Mais uma travessia Pra quem tem coragem De ir além da margem O amor é, na verdade O equilíbrio que se conquista Cortejando a insanidade.

domingo, 15 de outubro de 2006

Renato Russo

Dez anos de saudades Faz dez anos que um grande nome da música brasileira se foi. Na tv, no rádio e na internet são feitas homenagens. Há quem interprete suas músicas, há quem analise os efeitos de tais músicas na cabeça das pessoas e há também aqueles que apenas mencionam, com a voz trêmula de saudade, seu nome: Renato Russo. Já são dez anos sem sua voz imponente, a adentrar ouvidos e corações sem pedir licença. Sem seus gestos frenéticos, mãos e braços inquietos, coração sempre ávido por dizer palavras repletas de sinceridade. Olhar aguçado e rebelde, disposto a mostrar o que há de mais puro e de mais absurdo em nós. Ao lado do Marcelo Bonfá e do Dado Vila-Lobos, o Renato Russo criou a banda de rock que possivelmente é a mais influente e amada da história do rock nacional. Uma banda que foi e é muito popular, falando ao coração das pessoas com poesia, crítica social e muita atitude. A Legião Urbana é popular, mas sem ser “pop” no sentido pejorativo. O Renato, reconhecidamente a alma pensante do grupo, teve uma relação bastante próxima com os fãs, mas os holofotes sempre estiveram voltados para a mensagem das músicas, para a banda enquanto grupo de pessoas dedicadas a fazer arte com a cabeça e o coração. É por isso que muitas pessoas conheceram e passaram a admirar a obra do Renato após sua morte. Mensagens escritas com a pena da sabedoria e a tinta da beleza não são devoradas pelas traças que se escondem no interior das ampulhetas. As canções de amor Que homem incrível foi o Renato Russo. Suas canções, que falam de vários assuntos relacionados à vida das pessoas, têm a capacidade de mobilizar sentimentos, de gerar reflexão e debate, de nos impactar. As que falam de amor têm uma originalidade que é rara quando se trata desse tema. Todos falam do amor – do rock ao sertanejo, do funk carioca ao pagode – e quase sempre o que se fala é previsível e superficial. O amor é sempre uma flor que causa muita dor; e a paixão, que machuca o coração, nada mais é do que uma desilusão... Ora, quanta diferença entre esse jogo de ecos infinitos e as letras da Legião Urbana falando sobre o amor. A união entre forma e conteúdo Meu caro leitor (muito provavelmente apenas imaginário), veja esses versos: “Não estatize meus sentimentos/ Pra seu governo/ O meu estado é independente”. Meu Deus, que jogo de palavras maravilhoso. A metáfora entre política e amor, nesse trecho de Baader-Meinhof Blues, se prolonga de modo a me deixar degustando, nas vibrações do tímpano, algo tão inusitado e original. Quem gosta de escrever sabe muito bem que não é fácil brincar com as palavras, fazer trocadilhos e coisas afins, e ainda se manter fiel a um tema, dizendo algo inteligente e interessante. Pois o Renato Russo, nesses três versos, dá uma agradável aula de como fazê-lo. Eduardo e Mônica é uma linda ode ao mistério do amor. Linda sem ser um cute-cute sentimentalóide, porque nos faz pensar a respeito dessa força tão intensa que une duas pessoas. Essa força mágica que leva uma pessoa que gosta de assistir Godard a se sentir ligada a uma outra, que joga futebol de botão com o avô. Que leva alguém a explicar Van Gogh e Mutantes ao outro, que de sua parte aprende a beber e deixa o cabelo crescer. Que mistério culinário é esse que faz o arroz e o feijão se misturarem e darem origem a algo tão perfeito e diverso dos dois primeiros? E que faz, de quebra, o feijão ceder seu “i” ao arroz, dando origem ao arroiz com fejão, tão condizente com o processo de troca mútua pelo qual passam os amantes. Tudo isso dito de maneira sensível e engraçada na música (com exceção do último comentário, que é invencionice minha mesmo). Essa coisa misteriosamente agradável que une o Eduardo e a Mônica fica melhor quando não se tenta ingenuamente aplicar sobre ela uma equação matemática, quando se reconhece seu mistério essencial. Afinal, quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão? As coisas ficam bem assim, em aberto. Mais um ponto pro Renato. O amor visto de dentro No 3º cd da Legião, a música Angra dos Reis fala sobre o amor numa abordagem mais introspectiva, com uma melancolia que não deixa dúvida quanto ao autor da canção. Não se trata de uma história com começo, meio e fim, nos moldes de Eduardo e Mônica. Angra dos Reis, por falar do estado de espírito do amante, adentra um mundo meio caótico e polissêmico. Cada verso é um convite a construir um cenário, a imaginar feições, sentimentos, emoções. Um exemplo, pra mim, é a parte final da música: “Quando as estrelas começarem a cair/ Me diz, me diz/ Pra onde é que a gente vai fugir?”. Afinal, que estrelas cadentes são essas? Na minha opinião, o importante aqui é criar um clima, uma imagem em que nada é certo, nada é seguro. O eu-lírico está confuso, perdido numa espiral de sentimentos como medo e saudade. Essa cena, em que grandes estrelas caem do céu, levando o eu-lírico a se esconder, a fugir, é simbólica, uma representação externa do que ele sente, daquilo que o faz querer se refugiar. Nessa música, é muito forte o valor daquilo que não é dito. As lacunas esperam ser preenchidas com nossa capacidade de interpretação. Em resumo, uma viagem sem aditivos (rsrsrs). Um cd repleto de belas canções O quarto cd é muito rico em belas canções de amor. Não que os anteriores não o sejam, mas essa pluralidade é mais intensa em As Quatro Estações (não estou falando de Sandy & Júnior, que fique muito claro). Monte Castelo dialoga com Camões e a Bíblia, o que é no mínimo incomum numa banda de rock. Renato Russo cantando “Amor é fogo que arde sem ver...” é um tapa de luva em quem acha que rock falando de amor é sinônimo de amor em conserva, com pedacinhos de rima pronta e calda de senso comum – nada disso! Pais e Filhos, além de ter o mérito de abordar essa outra face do amor (do título) sem cair na armadilha de tomar partido de alguém, tem um dos grandes hinos da juventude a partir dos anos 90: “É preciso amar as pessoas/ Como se não houvesse amanhã/ Porque se você parar pra pensar/ Na verdade não há”. Quantos jovens, aglomerados em grandes encontros ou no silêncio de seus quartos, repetiram essas palavras num estado de transe, de admiração profunda diante da beleza da mensagem. Sete Cidades tem um trecho que eu considero o resumo simples e perfeito daquilo que sente quem está apaixonado: “Quando não estás aqui/ Sinto falta de mim mesmo”. Ora, ninguém nega o benefício do amor próprio, mas manter junto de si o objeto do seu amor, dividindo o mesmo calor, respirando o ar quente que acaba de viajar pelo corpo do outro, misturando saliva, enlaçando mãos e braços, enroscando pernas, tudo isso provoca em quem ama uma maravilhosa sensação de completude. Um momento mágico de paz e plenitude, que o Renato canta em dois versos. A beleza também veste cinza No quinto cd, a música Vento no Litoral apresenta de forma intensa algo que é muito característico da obra do cantor: a melancolia. Trechos como “Dos nossos planos é que tenho mais saudade” e “Eu deixo a onda me acertar/ E o vento vai levando tudo embora” resumem bem o clima nostálgico, melancólico e depressivo dessa canção. Muitos não gostam, justamente devido a esse trio indigesto que eu acabo de mencionar, sendo inclusive o motivo pelo qual várias pessoas não gostam da Legião Urbana em si. O que eu penso a respeito é que, em parte, a arte é tão maravilhosa por lidar com os sentimentos humanos. Não apenas os sentimentos de arco-íris, mas também os sentimentos de tempestade e terremoto. A arte é capaz de se voltar sobre a tristeza, o ódio e o desespero, do mesmo modo que pode fazê-lo em relação à alegria, o amor e a esperança. Claro que é importante ter o bom senso de apreciar uma obra no momento propício. Ouvir Vento no Litoral quando se está triste é puro masoquismo, mas isso não significa que a canção seja simplesmente feia. Ora, o quadro O Grito me dá um aperto no peito, com seus traços tortuosos e aquele semblante perplexo que parece interpelado pelo próprio absurdo de Camus, e é por isso que essa obra é tão especial. Quanto a Vento no Litoral, acho que é uma bela canção. Uma beleza distorcida e com ranço de bolor, que nem todos vêem. Além disso, a emoção que vem à tona na voz do Renato é maravilhosa(mente triste). Outra coisa: como fica claro no trecho “Quando vejo o mar/ Existe algo que diz/ A vida continua e se entregar é uma bobagem”, o eu-lírico não se entrega; ao contrário, se inspira no movimento incessante do mar para seguir em frente. Duas canções suaves e inesquecíveis Giz, do sétimo cd, é uma música ma-ra-vi-lho-as, e é com muito gosto que pronuncio cada sílaba ao me referir a ela. Quanto lirismo parece ser soprado em cada palavra, adentrando a alma pelas portas laterais (conhecidas como ouvidos). Alternando entre saudosas visitas à infância e trechos mais diretamente relacionados ao amor, Giz é uma perfeita união entre instrumentos, voz e letra. Como é agradável ver esse três elementos convivendo harmoniosamente. A melodia tem uma leveza que parece flutuar. As vozes do trio Renato, Manfredini & Júnior parecem um tom sobre tom de cores suaves. O trecho que vai de “E mesmo sem te ver...” até “Acho que estou gostando de alguém” (trecho que, coincidentemente, é a música toda) é ótimo de cantar e tocar ao violão. O próprio Renato dizia que essa é a música que ele mais gostou de fazer. Perfeitamente compreensível. O cd A Tempestade, oitavo da banda, tem Soul Parsifal, uma balada gostosa que fala do amor de modo super sensível. Que nos embala ora suavemente, como o trecho “É sereno o nosso amor/ E santo este lugar”, ora com uma agradável malícia, como em “Vê que a minha força é quase santa/ Como foi santo o meu penar/ Pecado é provocar desejo/ E depois renunciar”. A noção de pecado, em se tratando de amor, não deve ser ranzinza e intransigente, sob pena de quebrar o encanto que paira no ar quando ele está presente. Esse modo irreverente e engraçado de alfinetar o moralismo de botões todos fechados me agrada muito. Mas o mais interessante é, de fato, o modo sensível como o amor é abordado, e a maciez da voz geralmente nervosa. Um bonachão em meio ao funeral No último cd, Uma Outra Estação, o lado melancólico da obra do Renato estava muito forte. Já estava em A Tempestade, e neste último o lado mais sombrio ganhou contornos profundamente mórbidos. Uma Outra Estação + tristeza + objetos cortantes são uma mistura potencialmente sangrenta. Sarcasmo à parte, mesmo nessa última obra da banda, algumas canções são muito belas. É o caso de Comédia Romântica. A gaita e a guitarra distorcida são muito bem usadas pelo Dado, fazendo com a voz do Renato uma combinação muito agradável. Essa canção, como o título indica, não aborda o amor de forma colorida, com refrão de rosas e essência de chocolate. O trecho “Acho que só agora eu começo a ver/ Que tudo que você me disse/ É o que você gostaria/ Que tivessem dito pra você” mostra isso muito bem. Comédia Romântica tem qualquer coisa de irônica, do ditado popular “rir pra não chorar” que é bem original, porque não é o modo como as músicas costumam falar do tema amor. Além disso, acho que a guitarra distorcida tem tudo a ver com essa música, justamente por “distorcer” o tema. Sobre o blog (Olá... tem alguém aí?) Nossa, comecei a falar sobre o Renato Russo e uma palavra foi levando à outra, que leva à seguinte... O texto ganhou ares de análise um pouco mais ampla da obra. Paro por aqui, por enquanto. Já faz algum tempo que quero fazer esse blog e o momento propício pra falar sobre essa pessoa que eu tanto admiro acabou sendo o pontapé inicial. Agora vejo que vale a pena falar sobre as canções que tratam questões sociais e outros temas menos recorrentes. Além disso, muitas músicas com o tema do amor, que não estão no texto acima, merecem igualmente minha atenção. De qualquer forma, estou com a sensação de ter começado bem esse blog. Agora só falta as pessoas lerem e comentarem. Só falta o mais importante... rsrsrs