sábado, 12 de janeiro de 2008

O mergulho

A linda mocinha apaga as luzes e fecha os olhos. Ela quer viajar, fazer uma viagem especial a um lugar mágico onde só se pode chegar se o desejo e a entrega de si forem verdadeiros. Ela respira fundo, mas suavemente e de forma concentrada. Aos poucos, muito lentamente, a respiração agradável vai fluindo com naturalidade, como o dia e noite, o movimento da Terra ou as estações do ano. O desejo de abrir os olhos vai se esvaindo. Os cães que ladram lá fora soam distantes, cada vez mais distantes. Os problemas de ontem e de amanhã, as infindáveis preocupações que desviam a atenção, impedindo um momento de contemplação, vão sumindo... sumindo... sumindo...

Ela já não tem plena consciência de si. Sente um friozinho na barriga, como se estivesse subindo o elevador. Sente que o vento acaricia sua face e todo seu corpo, que fica arrepiado, de leve. Seu corpo parece flutuar, mas a consciência de ter um corpo já não é a mesma, já não é tão intensa. Esse momento tão gostoso se prolonga, e a moça não sabe se por alguns segundos ou dias inteiros. Assim como aconteceu com seu corpo, o próprio tempo se transforma: não é, não está sendo, não foi ou será: já não constitui incômoda prisão.

Ela sente que algo mudou. Alguma coisa ao seu redor, sem se manifestar, a convida a abrir os olhos. Ao fazê-lo, a linda moça tem uma revelação, um momento de beleza e magia. À sua frente, uma bela superfície ondulada e transparente se estende até onde os olhos alcançam.

Acima, nuvens de um azul que entra graciosamente pelos olhos. Azul como as extremidades das ondas. Azul como a tiara que prende seus cabelos. Azul como seu vestido longo, que dança ao sabor do vento, caprichosamente, unido a seu corpo por uma estreita faixa de pano. Azul como a aura que emana da lua, que em formato de C exibe um amarelo forte, intenso, vibrante.

O mesmo amarelo das estrelas refletidas na superfície transparentes, estrelas espalhadas a esmo. Na verdade, não há como dizer que as estrelas são o reflexo das que estão no céu, pois não há estrelas no céu. Talvez sejam estrelas do mar. Talvez sejam estrelas e a superfície transparente de extremidades azuis seja uma enorme nuvem.

Mas nada disso perturba a moça. Ela não lembra qual costumava ser o seu nome, mas qual a importância disso? Os padrões, as convenções, a necessidade de uma resposta coerente a tudo foi-se embora junto com o peso e o tempo.

nada a prende ela está num estado de pura liberdade nuvens ondas estrelas lua vestido tiara cabelos amarelo e azul tudo forma uma unidade em perfeita harmonia a moça transcendeu a idéia de ser algo à parte de tudo mais está livre e em paz

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

- - .- -.- -.- -.-

– Coé, mano? Tempão que a gente não se esbarra... E aquela mina lá, aquela que você tava afim e tals?
– Então... a situação está ótima, rapaz. A verdade é que ela também me ama.
– Pô, que massa!
– Pois é. A natureza conspira a nosso favor. Teremos um amor intenso e breve; uma chuva torrencial que surge subitamente, se espalha por todos os cantos, molhando a terra, carregando tudo, e se esvai em grande estilo nas sete cores de um lindo arco-íris.
– Só...
– Dizem que no começo era só o verbo, mas não é bem assim. No começo, antes de o mundo ser mundo, antes do dia e da noite, da vida e da morte, havia apenas o nosso amor escrito, antes mesmo de existir a escrita. O nosso amor aguarda, desde sempre, em estado embrionário, latente e pulsante, o momento exato de acontecer.
– Que doido, cara!
– E não é? O nosso amor é uma inevitabilidade histórica, assim como o final triunfante da luta de classes. É algo inexorável, implacável, irrefreável, inevitável. Resistir ao nosso amor seria como tentar cessar o fluxo da própria História.
– Pô, então ela tá amarradona mesmo!
– E digo mais. Há quem acredite que a existência precede a essência, ou seja, só é possível ser depois de existir; entretanto, tal filosofia cai por terra diante do amor que eu e essa pequena nutrimos um pelo outro. É inegável que já éramos amantes, namorados e enamorados antes de existirmos.
– Ó, mano, se eu entendi direito, o lance aí é sério mesmo. Vocês nasceram um pro outro!
– Vejo, com muita alegria e satisfação, meu caro, que sua percepção é exata. O único problema é fazê-la perceber tudo isso...