sábado, 11 de novembro de 2006
Por que assistir Charlie Chaplin
Ao olhar um grande quadro na parede, vejo um homem com um elegante chapéu, um terno já castigado pelo tempo, calças que me fazem compreender o porquê dos suspensórios e, por último, o pequeno grande detalhe dos sapatões (me refiro aos sapatos grandes!). Inevitavelmente me pergunto o que há de especial naquele homem de figura romântica e melancólica cujos olhos plenos de expressão parecem desconhecer a própria grandiosidade. Afinal, quem é esse homem que, com seu corpo franzino e sua alma gigantesca, levou e ainda leva multidões a rir e chorar diante de uma tela?
Charles Spencer Chaplin nasceu na Inglaterra do final do século XIX, um país marcado por problemas sociais, no qual muitos viam na arte uma forma de fugir do "capitalismo selvagem" das fábricas. Sua mãe Hannah, que cantava e representava, foi quem permitiu ao pequeno Charlie ter contato com a arte. Já no final da adolescência seu jeito único de fazer graça começava a torná-lo famoso, e em poucos anos, indo para os EUA, surgia o imortal Vagabundo descrito mais acima.
Perfeccionista, Chaplin fez dezenas de filmes, que lhe custaram horas e horas de trabalho incessante. O resultado? Algumas de suas obras são consideradas genuínos exemplos do que há de mais belo na sétima arte. É o caso de Tempos Modernos, um filme que critica o tal capitalismo selvagem ao mostrar um operário que, de tanto apertar parafusos, fica literalmente louco. E não me atrevo a tentar descrever o lirismo perfeito dessa cena! Também nesse filme, há uma cena em que o Vagabundo, por acidente, segura uma bandeira vermelha, sendo por isso preso como "líder comunista". Curiosamente, o próprio Chaplin, que defendia os direitos humanos e afirmava categoricamente ser humanista e não comunista, foi perseguido e até exilado por americanos um tanto paranóicos (certas coisas parecem nunca mudar...).
Outro exemplo do impulso incontrolável de Chaplin para "fazer arte" é O Grande Ditador, no qual o artista critica de forma genial e esmagadora um certo Adolf Hitler, cuja mania de grandeza custou a vida de milhões de pessoas (sim: judeus, negros e homossexuais são pessoas). E, assim como o outro, este filme também tem suas curiosidades. Olhe bem a figura de Chaplin e a de Hitler. Percebe algo? O bigode, claro! O Deus da Comédia e o deus da destruição, que nasceram com apenas quatro dias de diferença, conquistaram o mundo com um visual no mínimo inusitado.
Se Chaplin representa o amor à arte, o desejo de se dedicar a algo sublime e alcançar o máximo que a condição humana nos permite, a verdade é que hoje em dia as coisas são bem diferentes. O cinema mudo, que tinha muito a dizer, foi trocado por um cinema falado que, com seus tiros e suas explosões exageradas, pouco tem a comunicar. Com aqueles filmes de seqüestro aéreo, por exemplo, temos a oportunidade de ver o mesmo enredo n vezes. E os filme de guerra, então? Somos assediados, a todo momento, a acreditar que os EUA são nosso GOD: "Grande e Onipotente Defensor". Originalmente, o Super Man nada mais é do que a personificação disso.
Como não sou fatalista, devo admitir que existe um Roberto Bolaños (aqule do "Isso, isso, isso!") ou um Roberto Benigni (aquele outro do "Buongiorno, principessa!), que não só lembram o grande mestre, como nos presenteiam com sua própria genialidade. Portanto, na locadora da esquina existe, no meio do barulho irritante de tiros e ronco de motor, escondida e acuada num cantinho, uma fita de aspecto pouco atraente, mas capaz de revelar um mundo de lirismo, magia e sentimento. É só estender a mão e pegá-la.
Declaração de humor
Um minuto de silêncio
Repleto de arte e beleza
Gestos e faces que com certeza
Dizem mais ao coração
Do que gritos e barulho de explosão
Um minuto de gargalhadas incessantes
Quando você entra pela tela
E saltitante dá aquela
Sua tropeçada hilariante
Um maravilhoso vagabundo,
Um formidável andarilho,
Que percorre, de tela em tela,
Os quatro cantos do mundo
E carinhosamente lhe aplica
Um ponta-pé no fundilho
Para o completo delírio
Da platéia, que fica
Pra morrer de tanto rir
Porque é impossível não sorrir
Em sua presença tão marcante
Este é você, Carlitos
Com sua alegria contagiante
E seu olhar melancólico,
Que parece vasculhar o infinito,
Nos mostra o que há de mais mágico,
De mais intenso e mais bonito
Nesse mundo silencioso
Tão maravilhosamente falante,
Nesse mundo em preto e branco
Tão cheio de cor
A você, Carlitos,
Minha sincera declaração de humor.
Dolls - Takeshi Kitano
O filme Dolls, do cineasta japonês Takeshi Kitano, é um ótimo exemplo de cinema arte. A linguagem é muito bem cuidada em vários aspectos. Os diálogos enxutos se inserem numa perspectiva de não contar a estória, mas sim mostrá-la, deixando conosco grande parte do processo de compreensão. A parte visual é deslumbrante, um mosaico de cores e formas que convidam à contemplação. As cenas longas, arrastadas, aproximam vida e arte e conferem ao espectador a possibilidade de maior imersão na obra.
O que mais me cativa em Dolls é o enredo. Três estórias de amor que convergem no palco do drama e da tragédia. O termo palco é bem propício, porque o nome Dolls (bonecos) remete ao teatro nipônico chamado bunraku. Assim como os fantoches, no início do filme, se movimentam, sentem e se expressam sob o efeito decisivo de uma força maior, mas aparentemente têm a crença ingênua de serem a fonte de si mesmos, de forma análoga os personagens em Dolls agem dentro de um panorama de possibilidades já pré-definido, são absorvidos por uma realidade que lhes é exterior e alheia. A vida em sociedade é um grande teatro e os papéis disponíveis independem de nossa vontade. Essa analogia, ao meu ver, é válida sobretudo na estória central do filme (são três estórias que se cruzam, como mencionado acima).
Tudo isso mostrado de maneira muito intensa e ao mesmo tempo singela, com um silêncio gritante de personagens que trazem à tona seus sentimentos através de gestos, de olhares que são a ponta de um enorme iceberg. Além disso, o amor e a loucura são temáticas que se fundem, se interpenetram de modo intenso e angustiante. Quem ousa se insubordinar à mão invisível e tirânica que rege as relações humanas está à margem. O fantoche que se atreve a pular pra fora do palco e ganhar vida própria é insano. A respeito dessas simbologias que aqui estou analisando, convido você leitor a interpretar algumas cenas comigo.
Primeiro, o momento em que Sawako e Matsumoto estão caminhando contra o vento e atrás deles um grupo de pássaros tentam voar, mas não conseguem ir adiante devido à força do vento. Segundo, os momentos em que estes dois fazem juntos algumas travessias, como de um lado para outro do rio. Terceiro, o momento em que Sawako, até então aparentemente “ausente”, mostra a Matsumoto, de forma nostálgica e tristonha, o anjinho que ele havia dado a ela.
Dolls é, em resumo, um filme que me impactou muito, que me faz viajar sempre que o vejo de novo. Uma belíssima obra da sétima arte. Convido você, leitor querido e imaginário, a assisti-lo e trocar idéias comigo a respeito.
Dolls - poema
A travessia do espelho
(a Takeshi Kitano)
O amor é a flor insana
Que nasce no asfalto
Rompendo estatutos e normas
Em pleno oitavo dia da semana
É a realidade mais incrível
Que eu conhesso
É completamente aveço
À lógica e à matemática
Quanto mais se divide
Mais se multiplica
Quanto mais se explica
Mais se confunde o amor
Que na verdade nunca coincide
Com sua forma anterior
O amor é energia e movimento
Transforma as águas de um lago
Em rio destemido e violento
Que sobe as montanhas
Rumo ao azul infinito
No grande teatro
De papéis pré-definidos
Amar é transgredir, é inventar
Novas formas de agir e de pensar
É enfrentar a mão do diretor
Que nos faz andar em círculos
E fugir pela tangente
Porque fora do palco
Os amantes conhecem o inusitado
Contemplam o diferente
E unidos pelo amor
Que os torna fortes
Atravessam as pontes
Que surgem pela frente
E até mesmo a morte
Causa de tanto medo e agonia
É apenas mais uma passagem
Mais uma travessia
Pra quem tem coragem
De ir além da margem
O amor é, na verdade
O equilíbrio que se conquista
Cortejando a insanidade.
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